Um dia após a publicação da reportagem exclusiva de Ana Paula Mendes, a juíza divulga a sentença do caso, que teve prescrição penal. Um homem pilotava uma lancha que passou por cima e matou uma menina de 10 anos em Cabo Frio.
A juíza Janaina Pereira Pomposelli, do Tribunal de Justiça do Rio, divulgou na última sexta-feira (29) a sentença do caso envolvendo a morte de Maria Luiza Santana Serra, de 10 anos. Ela confirmou que houve impunidade, como adiantou a jornalista Ana Paula Mendes em um vídeo divulgado nas redes sociais dela um dia antes. Para que houvesse punição ao acusado de matar a menina de 10 anos, a sentença teria que ter sido emitida 4 anos atrás.
A criança foi atropelada por uma lancha em Cabo Frio em dezembro de 2016, na Praia do Forte. Ela estava em um dispositivo conhecido como banana boat, que foi atingido pela lancha. Outras quatro pessoas ficaram feridas. Segundo testemunhas, os ocupantes da banana boat e de outras embarcações próximas alertaram insistentemente o condutor da lancha sobre a iminência da colisão. Mas, segundo a acusação, houve negligência do condutor, que teria desrespeitado regras básicas para evitar esse tipo de acidente. Além disso, ele não teria prestado socorro às vítimas.
O condutor da lancha, Nostradamus Pereira Coelho, era acusado de homicídio culposo, quando não há intenção de matar, além de omissão de socorro e lesão corporal dos feridos. De acordo com a sentença divulgada agora, se fosse condenado pela pena máxima em todos os crimes que respondia, Nostradamus poderia pegar até 8 anos de prisão. Seriam 4 anos de prisão pela pena de homicídio culposo e mais 4 anos de prisão pelos quatro feridos. As penas foram agravadas devido à omissão de socorro.
O problema é que a pena chegou tarde demais. Em 2016, Nostradamus tinha 65 anos. Mas como a justiça demorou a julgar o caso dele, ao completar 70 anos, em 2021, o condutor da lancha foi beneficiado pela redução, pela metade, do prazo de prescrição penal. É o que diz a legislação brasileira. O prazo normal para a justiça julgar um caso de homicídio culposo é de 8 anos. Mas com o benefício previsto pela idade, no caso de Nostradamus, o prazo de prescrição caiu para 4 anos. Ou seja, a justiça tinha que ter julgado o caso dele até 2020 para que a pena fosse aplicada. Mas a sentença só saiu agora, 4 anos depois.
"Ao compulsar os autos, observe-se que entre o recebimento da denúncia, último marco interruptivo da prescrição, e a presente data, passaram-se mais de 04 (quatro) anos, sem que tenha sido colacionada aos autos alguma causa interruptiva ou suspensiva do prazo prescricional, sendo forçoso constatar a ocorrência do instituto da prescrição da pretensão punitiva estatal", diz a juíza na decisão.
Veja abaixo a reportagem completa e a repercussão com os citados.
HOMEM QUE PASSOU COM LANCHA EM CIMA DE CRIANÇA NÃO SERÁ PUNIDO (publicado em 28/02)
O caso ocorreu em 2016, em Cabo Frio. Uma menina de 10 anos, que estava em uma banana boat, morreu. A jornalista Ana Paula Mendes aprofundou-se no caso e descobriu que, como não houve julgamento até hoje, o crime prescreveu.
Impunidade. Essa pode ser a palavra para definir o desfecho de um caso que chamou a atenção do Brasil há sete anos. Em dezembro de 2016, uma lancha passou por cima de uma banana boat na Praia do Forte, em Cabo Frio. Uma menina de 10 anos morreu e três pessoas ficaram feridas. Segundo a acusação, o condutor da lancha teria desrespeitado regras para evitar esse tipo de acidente. Além disso, não prestou socorro às vítimas. Ele foi acusado de homicídio culposo, quando não há intenção de matar. Mas nunca vai cumprir uma pena pelo caso. Por causa da demora da justiça no julgamento, o crime prescreveu. A informação exclusiva é da jornalista Ana Paula Mendes, que apurou em que pé está o processo.
Esse é mais um exemplo de processos que expiram amontoados em prateleiras da justiça. Às famílias das vítimas resta a indignação. No caso da lancha, a família de Maria Luiza Santana Serra, que morreu no acidente, não conseguiu acompanhar a morosidade da justiça no estado do Rio e se mudou para o sul do Brasil. No Verão de 2016, a mãe e o padrasto dela moravam em Rio das Ostras. No verão de 2016, eles permitiram que a filha acompanhasse a família de uma amiga em um passeio na Praia do Forte, em Cabo Frio. A cidade fica movimentada nesse período. Era para ser um dia de muita diversão. Tanto, que embarcaram em um passeio com uma banana boat, um dispositivo inflável puxado por uma embarcação. Próximo ao Forte de São Matheus e à entrada para o canal do Itajuru, os ocupantes da banana boat avistaram uma lancha branca, de quase 10 metros, avançando em direção a eles. Os depoimentos que fazem parte do processo mostram o desespero das pessoas ao tentar alertar o condutor da embarcação, chamada Mister Boo, da colisão iminente. Mas não adiantou. Algumas pessoas que estavam na banana boat pularam na água. Outras, como Maria Luiza, não conseguiram. Por causa da violência da batida, os bombeiros passaram semanas procurando por partes do corpo dela. Outras três pessoas ficaram feridas e tiveram que ser hospitalizadas.
Os depoimentos também mostram que o condutor da lancha não teria prestado socorro às vítimas. Os ocupantes da banana boat foram resgatados por embarcações próximas. Ao abordar a lancha, a polícia encontrou bebida alcoólica. Mas testes de alcoolemia mostraram que o condutor, Nostradamus Pereira Coelho, não teria bebido. A lancha tinha seis ocupantes e estava indo da Ilha do Papagaio para a Ilha do Japonês. A documentação da embarcação estava em dia e a habilitação do condutor, regular.
Mas, de acordo com o Ministério Público, houve negligência do condutor, que teria desrespeitado regras de condução marítima para evitar esse tipo de acidente. As regras levam em consideração velocidade e distância das demais embarcações. Por isso, ele responde por homicídio culposo, quando não há intenção de matar. A pena pode chegar a 3 anos de prisão. Além disso, Nostradamus também foi acusado de omissão de socorro e lesão corporal.
O condutor foi preso em flagrante, mas conseguiu liberdade provisória e passou a cumprir medidas cautelares, como a proibição de acesso a qualquer embarcação marítima e comparecimento mensal ao juízo para justificar suas atividades.
Mas, até hoje, Nostradamus não foi julgado pelo crime envolvendo Maria Luiza. O processo dele, segundo o Tribunal de Justiça do Rio, está em tramitação. E mesmo que chegue a ser julgado, o condutor nunca será punido pela morte da menina de 10 anos. E para entender o motivo, vamos mergulhar no Código Penal. O crime de homicídio culposo, que Nostradamus responde, tem prazo de prescrição de 8 anos. Ou seja, se a justiça leva mais de 8 anos para dar um veredito, o processo é extinto. Na época do acidente, Nostradamus tinha 65 anos. Em 2021, quando completou 70 anos, o condutor ganhou o benefício da redução, pela metade, do prazo de prescrição. É o que diz a legislação brasileira. Ou seja, no caso de Nostradamus, o crime prescreveria agora em 2024. Mas quando ele completou 70 anos, o prazo para a justiça julgar o caso dele passou a ser considerado prescrito em 2020.
Sobre a demora no julgamento do caso, o Tribunal de Justiça do Rio informou que não comenta decisões e processos. E enviou a última movimentação do processo, um despacho do dia 22/12/2023, que relata a luta do Ministério Público para que o caso não deixasse de ser julgado. "Como bem exposto pelo MP, os fatos ocorreram em 03/12/2016 (há exatos 7 anos), sendo certo que esta ação penal apura a prática, em tese, de crime que guarda natureza gravíssima, sendo, portanto, dever deste Juízo evitar qualquer manobra, de quaisquer das partes, que tenham intenção de protelar o curso da ação e, assim, garantir a duração razoável da ação penal. Sendo assim ... determino a intimação das partes para a apresentação de suas alegações finais no prazo legal."
Conseguimos contato com a defesa de Nostradamus Pereira Coelho. O advogado Marcos Crissiuma informou que "a demora na tramitação não ocorreu por algum ato praticado pela defesa e sim diante da tramitação natural do processo". Disse, ainda, que "a prescrição, por certo, não é o resultado mais justo, pois o meu cliente é inocente e gostaria de um reconhecimento disso pela Justiça". A defesa alega que não houve infrações às regras de segurança marítimas e que o condutor teve a visão prejudicada por dois barcos pesqueiros fundeados na área do acidente. Informou ainda que não houve omissão de socorro. Uma das cordas da banana boat teria se enroscado na hélice do barco, o que o impediu de voltar para resgatar as vítimas.
O Tribunal Marítimo da Marinha, que também investiga o acidente, informou que o processo ainda está na fase de produção de provas. Não há prazo para julgamento. A investigação pelo TM começou em 2017 e segundo a entidade, segue as disposições legais e regimentais.
Estamos no aguardo de um posicionamento do Ministério Público, que alertou a justiça sobre a prescrição do prazo. A família de Maria Luiza, que mora no Rio Grande do Sul, não foi encontrada pela reportagem.
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